Operadoras economizam no valor da consulta para esbanjar com imagens produzidas em exames desnecessários.
Mantida a atual organização, os planos de saúde se tornarão inviáveis. Os primeiros sinais já estão à vista: demora para autorizar procedimentos, substituição de hospitais e laboratórios por similares de qualidade inferior e outras estratégias para redução de custos.
Sou leitor assíduo das colunas de Hélio Schwartsman na Folha. No último sábado, com o título de “Círculo Mórbido”, ele resumiu com precisão a encruzilhada em que se encontram os planos de saúde.
Em primeiro lugar, durante a pandemia os gastos das operadoras diminuíram graças à suspensão de cirurgias eletivas e de outros tratamentos. Agora, a demanda reprimida explodiu e a situação é de crise.
As fraudes também aumentaram, e os legisladores e reguladores ampliaram as coberturas sem considerar os custos. Assim, as mensalidades sobem mais do que a inflação.
Além disso, os jovens arriscam ficar sem planos, enquanto os mais velhos “fazem de tudo para mantê-los”, cenário em que a sinistralidade aumenta e encarece as mensalidades.
Hoje, cerca de 50,4 milhões de brasileiros são atendidos pela saúde suplementar, que responde por 60% do total de gastos com saúde no Brasil inteiro. Os gastos do SUS correspondem a apenas 40%, para cerca de 160 milhões de brasileiros que só contam com ele.
Nos anos 1970 e 1980, as operadoras dos planos tiveram alta lucratividade. Nas listas dos brasileiros mais ricos, havia sempre um empresário do setor. Numa época de inflação galopante, em que as mensalidades eram pagas em data certa enquanto hospitais, laboratórios e demais prestadores de serviços tinham o pagamento retido por 60 a 90 dias, aplicar esse dinheiro no mercado financeiro foi uma fria.
As operadoras não se preocupavam com os custos dos serviços contratados, mas com os prazos de pagamento. Na competição pela clientela, anunciavam na televisão o acesso aos equipamentos modernos, às tecnologias mais avançadas e ao transporte de doentes por helicóptero.
Tais extravagâncias publicitárias deram origem à cultura de que exames laboratoriais, ultrassonografias, tomografias e ressonâncias eram essenciais não só para recuperar como para manter a saúde.
Correr para o pronto-socorro ao primeiro pico febril da criança virou rotina. Perdi a conta de quantas vezes tenho ouvido essa frase: “pede todos os exames, doutor, eu tenho plano de saúde”.
Nesse contexto, os médicos tiveram papel importante. Preencher pedidos de exames com cruzinhas sem pensar nos custos é prática usual. Pouco antes da pandemia, uma paciente me trouxe 83 exames laboratoriais pedidos pela ginecologista numa consulta de rotina. O único número alterado era a dosagem de antimônio.
Solicitar exames de imagem para abreviar a consulta é uma estratégia para compensar os baixos salários que a maioria dos planos paga aos médicos. Eles economizam no valor da consulta para esbanjar com as imagens produzidas.
A realidade é que esses desmandos criaram uma situação que vai levar à insolvência. O número de operadoras tem caído desde 2016. Desde 2010, as despesas anuais com o atendimento pagas por elas aumentaram 18%, enquanto as receitas mal chegaram a 14%. Ao contrário de outras áreas da economia, na medicina a incorporação de tecnologia só aumenta drasticamente o preço do produto final.
Para agravar o quadro, há as fraudes e os desperdícios. Uma análise das contas hospitalares realizada pela Funeseg revelou que 18% correspondem a fraudes e 40% a exames desnecessários. Que atividade comercial consegue sobreviver com perdas da altura de quase 60% da receita?
Com o envelhecimento da população, as doenças crônicas se tornaram a principal demanda. Cerca de 60% dos adultos sofrem de uma delas. Quando o SUS foi criado, éramos mais jovens. Hoje, quando perdemos um familiar com 70 anos, dizemos que morreu cedo. A faixa da população que mais cresce, inclusive, é a que está acima dos 60 anos.
Os brasileiros envelhecem mal. Metade das mulheres e homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial, o número de pessoas com diabetes anda perto dos 20 milhões e mais da metade dos adultos tem excesso de peso ou obesidade.
A saúde suplementar está neste momento em um beco sem saída. A única alternativa é a prevenção. É preciso adotar programas semelhantes ao Estratégia Saúde da Família, do SUS, considerado um dos mais importantes do mundo, com equipes que contam com agentes de saúde para bater de porta em porta.
Folha de S.Paulo – DRAUZIO VARELLA – médico e oncologista